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Chegaram os boletins, famílias e escolas foram aprovadas?

Notas máximas tiradas por filhos/as não salvam mães e pais das suas próprias mediocridades

Num mundo ideal, não existiriam famílias do tipo “tem que tirar dez” nem escolas que tentassem nos fazer acreditar que as notas nos boletins escolares medem a competência apenas dos/as alunos/as. Porém, no mundo que conseguimos construir até aqui, pessoas adultas têm como parte dos rituais de final de ano cobrar – de pessoas crianças e de pessoas adolescentes – a alta performance que pouquíssimos/as de nós conseguem entregar. 

(Já começa aí a maluquice que eu nunca vi um adulto perfeito, por exemplo, em português, história, física, química, geografia, inglês, artes, ciência and matemática, tudo ao mesmo tempo.)

Evidentemente, há alunos/as que levam pra casa boletins impecáveis. Ótimo, excelente. Porém, esse é que é o acidente. Esperado é que pessoas de qualquer idade tenham talentos e dificuldades, gostos e desgostos, desvios de atenção e que sejam, como todos/as nós, impactadas por todos os acontecimentos do percurso. Boletim escolar é resultado de contexto, de um processo que durou um ano e envolveu a tríade família/escola/aluno. Se há um “resultado” portanto, bom ou ruim ele é de todo mundo. 

Objetivo é alcançar a média e ser aprovado/a para o nível seguinte. O que já é muito, principalmente no momento desafiador que vivemos. Quando esse objetivo não é atingido, tem que rever a atuação de todos os envolvidos, inclusive de alunos/as, mas não apenas deles/as. Se as notas são máximas, é bônus, deleite e surpresa, mas não algo que possa ser cobrado, dentro dos parâmetros de saúde mental. Ninguém tem obrigação de ser “acima da média”, percebe? Mas cobrar de crianças e adolescentes parece normal. Não é, nunca foi nem nunca será.

Em muitos aspectos, inclusive nesse, pessoas adultas precisam incluir no seu círculo de empatia as pessoas crianças e as pessoas adolescentes. Por outro lado, devem dirigir a elas mesmas parte do julgamento rigoroso que fazem quando recebem os números finais do ano letivo. Por fim, talvez seja honesto levantar os véus e interpretar direito a obsessão de pessoas adultas por excelentes resultados escolares. Uma dica? Esse é mais um lugar no qual crianças e adolescentes são objetos, quando deviam ser sujeitos. Repare.

Tem aquele negócio que a gente já conhece de comparar a prole com as proles dos outros.  “Tirou dez em tudo”, “passou direto” e “melhor resultado da turma” são frases do tipo “eu tenho, você não tem” que o povo gosta de levar para as festas de final de ano. “Mas a família não tem direito de sentir orgulho?” Tem, claro. Eu mesma me derreto de orgulho do meu filho, mas é comparando ele com ele mesmo. A cada ano melhor, mais inteiro, mais forte, mais sábio, mais pleno. Não sei se ele é o “primeiro”, o “segundo” ou o “terceiro” da turma. Nunca procurei saber, não me importa. Não é na comparação com outras crianças que valido a competência dele. Muito menos nas notas “dez” que acontecem muitas vezes, porém nunca foram exigidas. Acho bullying, pressão desnecessária e até deseducar. 

Filho/a não é troféu. Primeiro ponto, portanto. O segundo é que notas máximas tiradas por filhos/as não salvam mães e pais das suas próprias mediocridades. Que tem isso também, né? Projeção. Realizar no outro aquilo que não conseguiu em si e tome criança e adolescente na panela de pressão sem nem saber o porquê. Talvez isso tenha muito a ver com os números cada vez mais assustadores de distúrbios de comportamento e suicídios nessa faixa etária. “Mas o mundo é competitivo, vai criar fora da realidade?”. Não, criatura. Pelo contrário. Se o mundo é competitivo, pais e mães precisam, justamente, trabalhar pela estruturação de cabecinhas saudáveis e isso não se consegue reproduzindo a dureza do mundo dentro de casa. Isso não lhe parece ser, exatamente, “lidar com a realidade”?

(Não adianta nada ser uma máquina de assimilar conteúdo com o psicológico todo desgraçado.) 

“Ah, tá, então não pode cobrar mais nada”. Pode e deve. Faz parte exigir o comprometimento possível para cada idade que isso também é educar. Mas, além de cobrar do/a filho/a, também pode perceber quando a professora explicou mal determinado assunto e isso prejudicou certo aprendizado, observar os problemas técnicos das aulas online, acolher o tédio diante da escola conteudista e do despreparo de alguns profissionais. Por exemplo. Pode perceber que insuficiências na família também atrapalham. Sobretudo, pode entender que aluno/a é sujeito do processo e toda vez que é deslocado para o lugar de objeto, o processo fica disfuncional. 

Senso crítico nunca é demais e importa perceber também como essa competição de resultados já começa antes da hora na escola, quando aprender a cooperar seria muito mais estruturante de pessoas do tipo que precisamos no mundo. Porém, mal saíram das fraldas e  alunos/as começam a ser preparados/as pra pontuar alto no ENEM, passar em todos os vestibulares e levantar o valor da escola no mercado. Também é isso, a gente sabe. As escolas atiçam a competitividade desde bem cedinho, investindo nos/as garotos/as propaganda que alunos/as serão ao final do Ensino Médio. De graça. 

(Na ex-escola do meu filho tem uma competição nacional que faz on line, de vez em quando anunciam que algum aluno foi o melhor do Brasil em alguma coisa, porém nunca tomei parte do que seja esse negócio. Nem ele. Dez anos de idade, gente. Me poupe. Por exemplo, ele prefere ler sobre História, em vez de competir nas horas vagas. Acho massa.)

Temos outras prioridades e ainda lhe dou mais pano pra manga afirmando que pessoas crianças e pessoas adolescentes não têm obrigação de “retribuir” com excelentes notas “todo o esforço da família” ou a “dedicação da professora”. Estudar não é “só o que você faz”, não é “fácil” como escuto tanta gente falar. Esse olhar é mesquinho, saiba. Boletins devem ser interpretados além de números, recompensas, vaidades e interesses publicitários.

Vitórias possíveis, de filhos/as reais devem ser comemoradas e honradas. Aqui, tem presente e parabéns antes do resultado final. A festa, o fim do ciclo não depende de qualquer documento. A nossa celebração não tem autorização terceirizada. Aqui tem um filho e uma mãe com suas notas baixas, médias e altas, ambos medíocres e geniais, a depender da situação. Gente. Amor. Nenhuma dívida entre nós e a certeza de que, a cada final de ano, precisamos todos perguntar se famílias e escolas também foram aprovadas. Que boletim não é só de aluno/a, repito. A gente aqui tá ligado.

*Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo

Fonte: https://www.correio24horas.com.br/
Foto: Freepik

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